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Falsa cidadania italiana: entenda esquema fraudulento que envolveu apresentador Rodrigo Faro

A “Operação Carioca” que, nesta segunda-feira (27), levou à prisão de seis pessoas, das quais dois brasileiros, no sul da Itália, ganhou grande repercussão no Brasil porque envolveu o nome do Rodrigo Faro
Brasileiros portadores do passaporte italiano podem viajar, morar, estudar e trabalhar em qualquer país da União Europeia (imagem ilustrativa) AP – Daniel Cole

A “Operação Carioca” que, nesta segunda-feira (27), levou à prisão de seis pessoas, das quais dois brasileiros, no sul da Itália, ganhou grande repercussão no Brasil porque envolveu o nome do Rodrigo Faro. A TV italiana Rai afirma que o apresentador brasileiro e a esposa Vera Viel estão entre os acusados de se beneficiar de um sistema de corrupção que falsificava documentos para obter a cidadania italiana. O casal afirma ser vítima do esquema, que existe há anos no país. 

Na madrugada da segunda-feira (27), a Polícia Metropolitana de Nápoles deflagrou no município de Villaricca (província de Nápoles) a operação contra seis pessoas suspeitas de terem cometido crimes de falsificação, associação criminosa em ato público e corrupção.

A chamada “Operação Carioca”, coordenada pelos procuradores Antonietta Troncone e Cesare Sirignano do Ministério Público do Norte de Nápoles, revelou uma rede de supostos infratores envolvendo funcionários públicos italianos e dois brasileiros. Todos são acusados de associação criminosa visando corrupção e falsificação de documentos públicos.

Dois empresários brasileiros estão presos. O comunicado de imprensa do  MP do Norte de Nápoles revelou apenas as iniciais dos sobrenomes dos brasileiros detidos, F e Y. Porém, segundo a TV pública Rai (Tgr Campania), eles seriam Silmara Fagotti, proprietária da agência Diritti di Cittadinanza, e Flavio Yogui, que também teria uma agência de intermediação para obter a cidadania italiana. Na casa deles, teriam sido encontradas moedas virtuais Bitcoin e atividades financeiras ilegais.

O delegado da Polícia Municipal Antonio Amato e três funcionários do cartório de registro civil estão em prisão domiciliar. Na casa de um deles, foram apreendidos € 80 mil em dinheiro, além de relógios Rolex e outros bens valiosos.

De acordo com a acusação, a associação criminosa se organizou para que brasileiros obtivessem residência e depois a cidadania italiana fictícia. O site Tgr Campania indicou que entre os beneficiários estariam o jogador de futebol Bruno Duarte da Silva, atacante do clube português Sporting Clube Farense, Rodrigo Alcazar Faro e a esposa dele Vera Viel, além de alguns empresários e joalheiros de São Paulo.

As investigações mostram que Yogui teria acesso ao computador do cartório e iniciava os procedimentos com a cumplicidade dos funcionários. Em seguida, o delegado da polícia municipal atestava a presença na cidade dos requerentes que nunca haviam vindo a Villaricca. Logo após, o delegado também confirmava uma atividade de trabalho útil à cidadania e à emissão do passaporte italiano.

“É certamente interessante entender por que havia esse número extraordinário de pessoas famosas em Villaricca sem nunca terem ido lá”, comentou a comandante Lucia Rea do Corpo da Polícia Metropolitana de Nápoles em entrevista ao Tgr Campania.

Investigações duraram um ano

As investigações duraram um ano, com escutas telefônicas e câmeras secretas nos escritórios do município de Villaricca.

“Alguns funcionários que trabalhavam no cartório de registro civil, junto aos proprietários brasileiros das duas empresas com funções de intermediação, coletavam, pelo menos em papel, os pedidos de residência e concessão de cidadania italiana para brasileiros – realizando a implementação de um programa criminoso bem estabelecido – a fim de alterar e realizar regularmente os procedimentos exigidos por lei para o reconhecimento de residência no território do município de Villaricca e da cidadania italiana”, afirma o comunicado de imprensa.

De acordo com as investigações, o objetivo era fazer com que cidadãos brasileiros que não estivessem efetivamente presentes no município de Villaricca aparecessem como residentes, permitindo-lhes avançar na lista para obter a cidadania italiana.

“A organização criminosa dirigida por dois cidadãos brasileiros F e Y, tinha quatro propriedades nas quais os cidadãos brasileiros que haviam solicitado a cidadania italiana falsamente aparentavam ser residentes, se servia essencialmente de contribuições de funcionários municipais que, em troca de quantias em dinheiro e outros presentes vantajosos, falsificavam documentos, atestando falsas presenças no município, e, posteriormente, emitindo falsos certificados de residência”, afirma o comunicado.

A “Operação Carioca”, com as seis detenções efetuadas, projeta uma nova e perturbadora sombra sobre o funcionamento da máquina administrativa e sobre a presença de ilegalidade nas repartições municipais.

Versão de Rodrigo Faro

O apresentador Rodrigo Faro deu sua versão dos fatos através das redes sociais. “Declaramos que no ano de 2021, indicado por um amigo que já havia tirado seu passaporte italiano, Rodrigo Faro deu início ao processo de cidadania italiana para adquirir o passaporte para ele e sua família.O escritório indicado para esse trabalho foi o Diritto Di Cittadinanza SRL”, declarou.

Rodrigo, através de seus advogados no Brasil, forneceu toda a documentação necessária, comprovou laços com seus descendentes na Itália, o processo foi aprovado e os passaportes foram concedidos. No dia 27 de maio de 2024, Faro foi pego de surpresa com o suposto envolvimento no esquema de corrupção para obtenção de cidadania italiana.

As matérias repercutidas na imprensa brasileira deixam claro que Rodrigo e sua esposa foram citados como beneficiários do esquema, ou seja, foram vítimas desse escritório e de sua equipe, uma vez que contrataram o serviço de uma empresa supostamente legal, idônea e que seguia com os procedimentos de acordo com as leis italianas. Prova disso é que o processo foi aprovado e os passaportes foram emitidos.

Rodrigo Faro já acionou seus advogados no Brasil para que o mal-entendido seja resolvido e para que “os devidos responsáveis por esse suposto esquema de corrupção sejam devidamente punidos”

Fraude organizada

Esta é apenas a última de uma série de suspeitas de ilegalidades para fazer com que brasileiros obtenham o passaporte italiano.

A cidadania do país europeu é reconhecida apenas por Jus Sanguinis, ou seja, a pessoa tem que ser descendente de italianos. Portanto, há uma verdadeira caça aos antepassados, uma vez que as ascendências devem ser demonstradas através de documentos de estado civil, nascimentos, casamentos e óbitos.

Vale lembrar que os requerentes de cidadania geralmente não falam uma palavra de italiano. Assim, muitos golpistas se oferecem para acompanhá-los fisicamente aos cartórios do município em questão, munidos de documentação que comprove sua ascendência italiana e residência na Itália. Muitas vezes, os profissionais do golpe oferecem também um pacote turístico, com hospedagem, passeios e outros serviços.

Dezenas de falsos consultores, através de uma organização ramificada entre o Brasil e a Itália, sem sede física, mas muito ativa on-line, conseguem garantir a cidadania italiana e transformar qualquer pessoa em um “italiano vero”, com papéis carimbados, simplesmente subornando funcionários públicos das administrações locais.

Trata-se de uma fraude bem organizada envolvendo diversos pequenos e médios municípios italianos. A lista é longa. Somente em 2019 foram descobertas irregularidades em Padova, Verbania, Novara, Modena, Mantova, Portici, Savona, Omegna, Roseto degli Abruzzi, Castello di Cisterna, Teramo, Augusta, Floridia, Crocetta del Montello e Madalloni.

Uma operação de 2019, denominada “Super Santos”, levou à prisão de sete brasileiros. Na ocasião, cerca de 800 brasileiros, que obtiveram o passaporte ilegalmente, tiveram a cidadania italiana revogada.

“Somente em três dias eles transformavam cerca de mil brasileiros em cidadãos italianos, ao preço de € 7 mil (aproximadamente R$ 40 mil) em dinheiro vivo. As agências de negócios, administradas ilegalmente pelos brasileiros detidos, haviam se transformado em verdadeiras agências de turismo”, afirmou o comunicado da polícia italiana sobre a operação “Super Santos”.

Na época, além dos brasileiros, um padre da diocese de Pádua também foi detido por ter vendido uma certidão de batismo falsa para confirmar a ascendência italiana de um dos envolvidos.

Busca até nos cemitérios

As paróquias são muitos procuradas, pois no final do século 19, quando houve a primeira grande onda da imigração italiana ao Brasil, as certidões de batismo emitidas pelas igrejas eram muitas vezes os únicos documentos que os imigrantes deixavam no país natal.

Camillo De Pellegrin é prefeito de Val di Zoldo, província de Belluno na região do Vêneto, um dos municípios mais afetados pelos falsificadores que tentam recuperar os dados de antepassados italianos reais ou presumidos.

Ele explicou à revista semanal italiana Panorama que “às vezes os falsificadores entravam nos cemitérios e procuram sobrenomes adequados entre os túmulos dos falecidos, depois construíam uma história fictícia com a documentação”.

Brasileiros “fantasmas”

Na pacata cidadezinha de Ospedaletto Lodigiano não existe nem escola de samba. No entanto, dos 2.057 habitantes, 1.300 nasceram e foram criados no Brasil. No papel, quase todos moraram em cinco apartamentos no mesmo prédio. Imóveis que, coincidentemente, eram de propriedade do ex-chefe do cartório municipal, Roberto Capra.

Na verdade, estes brasileiros nunca pisaram em Ospedaletto. Um policial municipal, Mariano Pozzoli, encarregado de apurar a residência dos recém-chegados, simulava que tudo estava em ordem e que realmente moravam naquela casa, em regime de rodízio, vindos de diferentes localidades do Brasil. Com base nessas constatações, o próprio Capra emitiu o certificado de residência no cartório, e os brasileiros tornaram-se imediatamente cidadãos italianos.

Até 2015, estavam presentes na cidadezinha 85 cidadãos estrangeiros, e no ano seguinte já eram quase mil, que depois aumentaram. O dado chamou a atenção da então prefeita, Lucia Mizzi. “Nunca tinha visto sequer um brasileiro na cidade. Muito menos 1.300. Eu teria notado porque a cidade é muito pequena e fica quase inteiramente ao longo de uma única estrada” disse Mizzi ao jornal Corriere della Sera.

O “escândalo dos brasileiros fantasmas” foi descoberto em 2017, mas até hoje pesa no orçamento municipal de Ospedaletto. Desde o início do processo judicial, que eclodiu em julho de 2017, o município teve de pagar mais de € 300 mil, (quase R$ 1.700.000) principalmente com despesas judiciais.

Tribunais lotados de pedidos

Os tribunais da região do Vêneto estão abarrotados com pedidos de cidadania italiana para cerca de 150 mil brasileiros. São doze mil recursos interpostos em um ano, exatamente uma média de mil por mês. Mas o número de 12 mil não diz tudo: por trás de cada apelo estão de fato famílias inteiras, de até 15 pessoas, o que eleva o número de requerentes para uma estimativa que varia entre 100 e 150 mil.

O Vêneto, terra de imigrantes para o Brasil, tem números elevados, mas dar cidadania a tantas pessoas significa que elas podem se registrar no Aire (registro de italianos residentes no exterior). Além disso, elas têm o direito de votar nas eleições do parlamento italiano e nos referendos.

Para compreender a situação atual, é preciso recuar alguns anos. O Tribunal de Cassação já tinha alargado o leque de possíveis requerentes de cidadania, admitindo a possibilidade de concedê-la também a quem tem ascendência italiana com o Jus Sanguinis através de mulheres.

Portanto, os descendentes de mãe italiana também podem solicitar o reconhecimento da cidadania italiana, desde que tenham nascido depois de 1º de janeiro de 1948, data de entrada em vigor da Constituição.

Com o passaporte italiano os brasileiros podem viajar, morar, estudar e trabalhar em qualquer país da União Europeia e chegar aos destinos mais procurados como o rico norte da Europa. Além disso, podem facilmente entrar nos Estados Unidos e obter a autorização de trabalho padrão E2, um visto comercial para quem quer abrir um negócio, para o qual um italiano precisa de cerca de US$ 70 mil, enquanto um brasileiro necessita de muito mais.

Gina Marques, correspondente da RFI na Itália

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