Recuperação judicial de produtor rural em Mato Grosso cria conflitos com tradings
SÃO PAULO (Reuters) – Um crescente número de recuperações judiciais requeridas por produtores rurais em Mato Grosso está criando conflitos entre eles e as grandes tradings, que financiam parte da safra por meio de operações de “barter” e estão entre os seus principais credores.
Recentemente, as tradings têm sido surpreendidas por pedidos de recuperação pelos chamados produtores “pessoas físicas”, o que dizem não ser permitido por lei, já que eles não operam como empresas de fato. Isto tem tornado difícil a obtenção da soja dada em garantia em operações de crédito, segundo as empresas.
Judiney de Souza, presidente-executivo da brasileira Amaggi, disse à Reuters que a onda de pedidos de recuperação por produtores rurais “é causa de preocupação”.
“Quando é concedida a RJ sem o registro (da empresa do produtor rural) na junta comercial, isto coloca a análise de crédito em risco”, afirmou ele.
A Amaggi diz ter quase 24 mil toneladas de soja a receber do produtor Zeca Viana, que pediu recuperação este ano para reestruturar um total de quase 312 milhões de reais em dívidas.
“Minha principal preocupação é a falta de crédito para financiar a próxima safra”, disse Viana, que foi deputado estadual e atribui a crise financeira do seu grupo à expansão do plantio, problemas climáticos e a própria distração da política.
Viana agora enfrenta dificuldade para vender a produção, por causa da disputa pela soja dada em garantia às tradings.
O advogado Euclides Ribeiro, que representa Viana e ao menos meia dúzia de outros produtores que pediram recuperação judicial, disse que os créditos das trading têm de ser pagos de acordo com o estabelecido na lei de recuperação de empresas.
Enquanto isto, Louis Dreyfus também briga na Justiça para arrestar quase 12 mil toneladas de soja do Viana, avaliadas em cerca de 5 milhões de dólares, de acordo com Thiago Gerbasi, advogado da empresa.
Ele afirma que a Dreyfus pagou pela soja de Viana no ano passado, por meio de um acordo que envolveu a troca de fertilizantes por grãos.
O aumento dos pedidos de recuperação por produtores rurais pessoas físicas pode tornar as tradings mais exigentes na concessão do crédito, comprometendo uma importante fonte de financiamento ao produtor.
A EXPLOSÃO DO “BARTER”
Por meio do “barter”, as tradings trocam insumos como sementes, fertilizantes e agroquímicos por grãos a serem entregues na colheita.
Essa forma de negociação cresceu muito nos últimos anos, o que permitiu às tradings estreitar o relacionamento com o produtor, ao mesmo tempo em que tentam obter melhores margens fora da originação, onde as mesmas ficaram apertadas com a chegada dos concorrentes chineses.
“Com mais players competindo pela soja, as margens de originação ficaram menores e as empresas começaram a diversificar através da venda insumos”, disse uma fonte da Cargill que não tem autorização para falar em nome da empresa.
A Cargill preferiu não comentar.
As operações com “barter” aumentaram seis vezes nas últimas cinco safras, representando quase um terço do financiamento ao produtor em Mato Grosso na safra 2018/2019, de acordo com o Instituto Mato-grossense de Economia Agropecuária (Imea).
A inadimplência da carteira de crédito ao produtor rural pessoa física mais que dobrou em cinco anos, para 2,8% no ano passado, mostram dados do Banco Central.
Novos pedidos de recuperação judicial em Mato Grosso atingiram nove no ano passado, a mais alta taxa anual desde 2015, de acordo como Serasa.
“INDÚSTRIA DA RECUPERAÇÃO JUDICIAL”
À medida que as tradings se tornaram mais expostas ao risco de crédito ao produtor, elas aprenderam —do jeito mais difícil— que seus direitos poderiam ser suspensos pelo efeito das recuperações judiciais sobre a efetividade dos contratos.
Muitos produtores pagam impostos como pessoas físicas, e não como empresas, mas seus advogados sustentam que eles operam um negócio de fato, o que lhes daria o direito de pedir recuperação à Justiça como qualquer outra companhia.
A Abiove, associação de processadores de oleaginosas que inclui as quatro grandes tradings do chamado grupo ABCD, diz que se instalou no Brasil “uma indústria da recuperação judicial”.
“A Abiove se preocupa com a utilização indevida do instituto da RJ. Os casos têm se multiplicado em projeção geométrica”, disse André Nassar, presidente da entidade.
Enquanto os juízes de varas locais têm concedido a recuperação judicial a produtores pessoas físicas, tribunais superiores têm proferido decisões conflitantes sobre o tema.
Ao mesmo tempo, em Brasília a questão ainda não foi julgada em definitivo, o que gera insegurança jurídica para as empresas que precisam avaliar risco de crédito ao produtor.
Roberto Marcon, diretor de originação na Bunge do Brasil, disse por meio de nota que as tradings consideram mudar a estrutura das garantias do “barter” depois que aumento do número de pedidos de recuperação aumentou os riscos.
“Trading não é banco. Elas dão o dinheiro ou matéria-prima e querem o produto de volta”, disse Souza, da Amaggi.
Reuters Brasil – Reportagem de Ana Mano; edição de Roberto Samora